sexta-feira, dezembro 13, 2002



OLHEM PARA OS PÉS DELE


Jorge Silva Melo
Público, Sexta-feira, 06 de Dezembro de 2002


Olhem bem para o chão do palco do pequeno auditório da Culturgest, em Lisboa, onde ontem estreou "O Encarregado", de Harold Pinter. Olhem bem para os pés de Jorge Silva Melo (Davies). São pés que se mexem assustados, que pululam, que se viram e reviram, descalçam e calçam, que (tememos) ficarão mirrados nuns sapatos de couro.

Olhem para os pés dele a arrastarem-se, para a inquietude terrena que se alastra ao resto do corpo até chegar às mãos e contaminar a sala. E ouçam-no, a Davies: "Sapatos? É de vida ou de morte para mim."

Diz Jorge Silva Melo: "O trabalho de representação nasceu muito dos pés. Jogo muito com o que calço e represento muito a partir da sensação de pisar. Portanto aquelas sandálias ou meios-sapatos que trago ajudaram-me a uma espécie de permanente impermanência."

Silva Melo faz de Davies, um sem-abrigo que Aston (Américo Silva) decide abrigar no sótão onde vive. Depois, aparecerá o irmão Mike (José Airosa) e fica-se sem se perceber qual dos dois é o dono daquele espaço. E começa o jogo de poder, com Davies a querer também mandar.

Olhem bem para o pés dele, porque sem um bom par de sapatos Davies não consegue ir a lado nenhum. Transfere para Aston a "responsabilidade" de lhe arranjar o calçado perfeito. Mas para Davies os sapatos são sempre imperfeitos e isso transforma-se numa desculpa: para a sua imobilidade, para a sua inacção, para não ir a Sidcup buscar os documentos que lhe devolveriam a verdadeira identidade. Uma desculpa para não arredar pé dali.

Davies despreza quem o abrigou, Aston; teme o outro "senhorio", Mike. E joga assim nos dois campos da relação de forças: é impositivo, autoritário, ingrato; ou frágil, submisso, desprotegido. Há nele perversidade - "um racista do pior, uma ratazanazita", comenta o actor. É uma figura repulsiva mas não tanto quanto a do torturador de "Um Para o Caminho" (também de Pinter), também representado por Silva Melo, também com José Airosa (só que aqui Airosa já não é o "torturado" da peça anterior mas é Mike, figura que reprime Davies). "É um ser abjecto, mas tem encanto, um pequeno sonho de convívio. É essa sub-humanidade que é misteriosa nesta peça: não percebemos as relações destas personagens, que são muito engraçadas mas que têm uma atmosfera sinistra de jogo de poder, de domínio absoluto do outro."

Os três homens lutam pelo domínio do espaço: quem ali manda tem o ascendente sobre o outro, sublinha João Meireles, encenador. Nas cumplicidades e nos antagonismos que cada um vai estabelecendo, nos argumentos que utilizam, espelham-se os comportamentos dos que mudam de partidos políticos, acrescenta Meireles, a quem interessa mais as peças políticas de Pinter do que as que se centram nas relações amorosas; a quem impressiona a escrita de teatro "tão justa e tão certeira" do britânico.

Uma escrita sobre a qual o actor tem de trabalhar como se fosse um intérprete musical, diz Silva Melo: "É como se fosse preciso aprender as escalas e melodia que temos de tocar; há um distanciamento entre o actor e a personagem que é muito inglês e muito parecido com o que o intérprete tem com a melodia."

Para Silva Melo, a personagem que representa é indissociável de um actor "muito especial, quase impossível": Augusto de Figueiredo representou-a em 1967, no Tivoli, numa encenação de Jorge Listopad. Silva Melo viu-o, aos 19 anos. "Foi inesquecível, vem-me muito à memória a forma como ele representava, a fragilidade dele - eu não sou tão frágil. Sinto-me sempre em deficiência em relação ao Augusto... Faz-me uma certa confusão representar um papel que para mim está colado a ele!"

Joana Gorjão Henriques



salamandrine 10:19



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